1. Introdução
Vivemos numa era em que comer tornou-se, mais do que nunca, um ato político, ambiental e ético. No meio de tanto ruído mediático, documentários sensacionalistas e mitos importados de realidades alheias, há um tema que merece um olhar mais sereno e informado: o peixe de aquacultura.
Deveria o consumidor evitá-lo por medo de antibióticos, de práticas intensivas ou da suposta inferioridade nutricional? Ou, pelo contrário, não estará a aquacultura moderna — especialmente dentro da União Europeia — a oferecer uma solução viável, segura e sustentável para um mundo com fome de proteína e carente de recursos naturais?
Com muita frequência, confesso que fico genuinamente preocupado com a falta de bom senso com que se rejeitam certas opções alimentares, apenas porque “ouviram falar” de algum medo ou escândalo associado.
Medos que, na maioria das vezes, são mitos mal interpretados ou problemas reais de outras geografias, que em nada se aplicam ao nosso contexto europeu, com legislação das mais exigentes do mundo em segurança alimentar.
Além disso, é importante lembrar que a realidade alimentar evolui — e muito. O que podia ter fundamento há 10 ou 20 anos, hoje pode já não fazer qualquer sentido.
Um exemplo gritante é o velho fantasma das hormonas nos frangos: ainda há quem repita isso como um mantra, apesar de ser ilegal na União Europeia há décadas e de não haver qualquer evidência de uso corrente.
É o mesmo raciocínio que se aplica muitas vezes ao peixe de aquacultura: associações infundadas a práticas ultrapassadas, sem atualização crítica da informação.
Neste artigo, proponho-me a desmontar os principais equívocos e apresentar uma análise técnica, abrangente e atualizada sobre o papel do peixe de aquacultura na alimentação moderna.
2. A importância estratégica do consumo de peixe
Antes de nos perdermos em debates sobre a origem do peixe, convém lembrar porque é que o consumo de peixe é, em si, tão valioso.
O peixe é uma das fontes alimentares mais completas do ponto de vista nutricional:
- Rica em proteína de alto valor biológico, com excelente digestibilidade;
- Fonte de ácidos gordos ómega-3 (EPA e DHA), essenciais para a saúde cardiovascular, cerebral e metabólica;
- Contribui com vitamina D, B12, iodo, selénio e zinco — nutrientes frequentemente deficitários na população ocidental;
- Possui baixo teor de gorduras saturadas e, dependendo da espécie, uma densidade calórica muito baixa.
Dietas que incluem peixe de forma regular estão associadas a redução do risco de doenças cardiovasculares, declínio cognitivo, inflamações crónicas, diabetes tipo 2 e até depressão. A Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar (EFSA) e a Organização Mundial de Saúde recomendam duas a três porções semanais de peixe, o que muitas vezes está longe de ser cumprido pela maioria dos europeus.
O problema é que a má reputação injustificada da aquacultura está a afastar muitas pessoas do peixe — substituindo-o, na prática, por alimentos muito menos saudáveis.
3. A resposta da aquacultura à crise ecológica dos oceanos
A realidade é simples: não é possível alimentar 8 mil milhões de pessoas com peixe exclusivamente selvagem sem esgotar os mares.
A sobrepesca já atinge níveis críticos em várias espécies:
- O atum-rabilho, a pescada, o bacalhau-do-atlântico e várias espécies de camarão enfrentam pressões de pesca superiores à sua capacidade de regeneração;
- Muitas frotas operam de forma ilegal, não reportada ou não regulamentada;
- A captura acessória (bycatch) continua a dizimar tartarugas, golfinhos, aves marinhas e juvenis de outras espécies.
Neste contexto, a aquacultura apresenta-se não como um substituto perfeito, mas como um complemento necessário. Permite preservar populações selvagens, garantir abastecimento constante e reduzir a pressão ecológica sobre os oceanos.
Importa sublinhar que a UE lidera mundialmente em boas práticas na aquacultura, com sistemas de produção em circuito fechado, monitorização constante da qualidade da água e da densidade populacional, rastreabilidade completa e restrições rigorosas ao uso de antibióticos ou aditivos.
4. O peixe selvagem: romântico, mas nem sempre seguro
Existe uma imagem quase mítica do peixe selvagem — livre, puro, a nadar em águas cristalinas e alimentado pela natureza.
É uma visão que agrada ao imaginário coletivo e que se tem mantido viva, alimentada por campanhas de marketing e uma certa nostalgia ecológica. No entanto, esta perceção, embora apelativa, nem sempre corresponde à realidade atual dos nossos mares e sistemas alimentares.
a) Contaminação com poluentes ambientais – A crescente poluição dos oceanos tornou-se um fator crítico na avaliação da segurança alimentar do peixe selvagem. Espécies de grande porte, de topo da cadeia alimentar e com longos ciclos de vida — como o atum, espadarte, peixe-espada, tubarão ou garoupa — estão particularmente expostas ao fenómeno da bioacumulação e biomagnificação: a acumulação progressiva de contaminantes ao longo do tempo e da cadeia alimentar.
Os contaminantes mais frequentemente encontrados incluem:
- Mercúrio (Hg): presente sob a forma de metilmercúrio, é altamente tóxico para o sistema nervoso. A exposição crónica está associada a défices cognitivos, distúrbios neurológicos e problemas no desenvolvimento fetal. Por isso, as recomendações nutricionais para grávidas e crianças limitam estritamente o consumo de espécies predadoras selvagens.
- Dioxinas e PCBs (bifenilos policlorados): são compostos orgânicos persistentes, de origem industrial, com elevado potencial carcinogénico e efeitos reconhecidos na desregulação hormonal e imunológica. São solúveis em gordura e acumulam-se preferencialmente nos tecidos lipídicos dos peixes mais gordos.
- Microplásticos, hidrocarbonetos e derivados de pesticidas: resíduos de plástico e compostos tóxicos estão presentes até nas zonas mais remotas dos oceanos. Já foram detetados fragmentos de microplástico no trato gastrointestinal de peixes selvagens e mesmo em tecidos comestíveis.
Estas substâncias não são removidas pela cozedura ou congelação, e podem representar riscos cumulativos para a saúde humana a longo prazo — especialmente em populações vulneráveis ou com consumo elevado de peixe.
b) Qualidade nutricional e sensorial variável – Outro ponto muitas vezes ignorado é a inconsistência do peixe selvagem. Ao contrário do peixe de aquacultura — que é alimentado com rações específicas, controladas e otimizadas para maximizar o teor de ómega-3, proteína e gordura saudável — o peixe selvagem depende do que encontra no meio natural. Isso significa que:
- O teor de gordura e ómega-3 pode variar largamente com a época do ano, a zona geográfica e a disponibilidade de alimento;
- A textura e o sabor também são imprevisíveis, sendo por vezes mais fibrosos, secos ou com sabor acentuado a iodo, dependendo da espécie e habitat;
- As condições de captura e conservação pós-pesca influenciam fortemente a frescura e qualidade final — algo que, em muitos casos, está fora do controlo do consumidor.
Por outro lado, o peixe de aquacultura, produzido em ambientes controlados, apresenta qualidade constante, rastreabilidade garantida e composição nutricional otimizada.
O exemplo paradigmático é o salmão de aquacultura, frequentemente mais rico em ómega-3, vitamina D3 e com menos poluentes do que o salmão selvagem, graças à sua alimentação direcionada.
5. E quanto ao uso de antibióticos na aquacultura?
Entre os argumentos mais frequentemente invocados contra o peixe de aquacultura, há um que se destaca pela sua persistência e pelo impacto que tem na perceção pública: o medo do uso de antibióticos. A ideia de consumir peixe “cheio de químicos”, “artificial” ou “medicado” circula amplamente, alimentada por reportagens sensacionalistas e uma série de escândalos — reais, mas geograficamente e temporalmente distantes.
É verdade que, em países com regulamentações laxistas ou fiscalizações ineficazes, como certas regiões do Sudeste Asiático ou da América Latina, houve registos documentados de uso indiscriminado de antibióticos em aquacultura.
Mas importar essa realidade para o contexto europeu é um erro de avaliação — e um exemplo clássico de como um medo legítimo, mas mal localizado, se transforma num mito injustificado.
Na União Europeia, o panorama é completamente distinto.
A legislação comunitária relativa ao uso de medicamentos veterinários é das mais rigorosas do mundo. O Regulamento (UE) 2019/6 estabelece regras claras para a prescrição, utilização, controlo e vigilância de substâncias farmacológicas em animais de produção. No caso da aquacultura:
- O uso de antibióticos está sujeito a prescrição veterinária e apenas é permitido com justificação clínica concreta, após diagnóstico e em situações específicas de infeção. A utilização preventiva sistemática é explicitamente proibida.
- As principais espécies produzidas em aquacultura (como a dourada, o robalo ou o salmão) são vacinadas profilaticamente em fases iniciais do ciclo de vida, com vacinas polivalentes que cobrem os agentes patogénicos mais prevalentes. Isso reduz drasticamente a necessidade de intervenção farmacológica posterior.
- Mesmo nos casos em que é necessário recorrer a antibióticos, a legislação exige períodos de carência obrigatórios antes do abate, que garantem a eliminação dos resíduos do organismo dos peixes antes de entrarem na cadeia alimentar.
- Toda a cadeia é sujeita a monitorização rigorosa de resíduos medicamentosos, com análise laboratorial sistemática, cujos resultados são tornados públicos através de relatórios da EFSA (Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar) e das entidades nacionais competentes.
E os dados são claros:
o risco para o consumidor é praticamente nulo. Os níveis de resíduos detetados em peixes de aquacultura produzidos na Europa são muito inferiores aos limites legais estabelecidos — e, na esmagadora maioria dos casos, simplesmente inexistentes.
Quando comparados com outras fontes de proteína animal, como carne de porco ou frango, o peixe de aquacultura destaca-se pela segurança e rastreabilidade farmacológica.
O medo de “comer peixe carregado de antibióticos” é, por isso, um reflexo de desinformação descontextualizada. E, ironicamente, pode estar a afastar os consumidores de uma fonte alimentar segura, nutritiva e ambientalmente mais sustentável, empurrando-os para alternativas menos saudáveis.
Além disso, importa frisar que, ao contrário do que acontece noutros setores agroalimentares, a aquacultura tem evoluído no sentido de uma medicina preventiva, e não corretiva — apostando na melhoria das condições de cultivo, nutrição, densidade populacional e gestão sanitária.
6. O papel do marisco: nutritivo, sustentável e, muitas vezes, local
Quando se fala em aquacultura, o pensamento recai quase sempre sobre peixes como salmão, dourada ou robalo. Mas o marisco de cultivo — nomeadamente bivalves como amêijoas, mexilhões, ostras e vieiras, assim como camarões produzidos em sistemas controlados — merece um lugar central na discussão, tanto do ponto de vista nutricional como ecológico.
Estes alimentos destacam-se por:
- Serem ricos em micronutrientes fundamentais como ferro, zinco, selénio, vitamina B12 e ácidos gordos ómega-3, num perfil nutricional altamente denso e de baixa carga calórica;
- Serem produzidos frequentemente em sistemas extensivos, com baixo impacto ambiental, como em marés, estuários e áreas lagunares — sem necessidade de rações ou aditivos;
- Contribuírem para a economia local e soberania alimentar, com produção destacada em zonas como a Ria Formosa, Estuário do Sado e Ria de Aveiro, mantendo viva uma tradição ancestral portuguesa;
- Serem versáteis na cozinha, com elevado valor gastronómico e facilidade de integração em refeições simples, nutritivas e acessíveis.
Além disso, os bivalves — como mexilhões e ostras — são organismos filtradores naturais, que contribuem para melhorar a qualidade da água onde vivem, fixando nutrientes em excesso e ajudando a manter o equilíbrio ecológico do meio. São, por isso, exemplos de produção alimentar verdadeiramente regenerativa.
Incluir marisco na alimentação, mesmo o mais económico, não é apenas uma boa escolha nutricional. É também um gesto de apoio à sustentabilidade e à produção nacional.
7. Peixe congelado: uma opção prática, segura e inteligente
Outro equívoco que merece correção é o preconceito contra o peixe congelado. Muitos consumidores continuam a vê-lo como uma opção “inferior” — quando, na verdade, é uma solução moderna, eficiente e segura, particularmente num mundo que exige conveniência e minimização do desperdício.
Hoje, os métodos de congelamento industrial, como a ultracongelação a bordo ou em unidades de transformação próximas da origem, permitem:
- Preservar integralmente o valor nutricional, a textura e a segurança microbiológica, muitas vezes até com mais eficácia do que o transporte de peixe “fresco” sem controlo térmico rigoroso;
- Evitar flutuações de qualidade, garantindo ao consumidor um produto constante em sabor, aparência e segurança;
- Reduzir drasticamente o desperdício alimentar, permitindo compras em maior volume, armazenamento a longo prazo e melhor gestão das refeições;
- Tornar o peixe mais acessível — em termos de preço, disponibilidade e tempo de preparação, facilitando o cumprimento das recomendações nutricionais para o consumo regular de peixe.
Importa lembrar que grande parte do peixe vendido como “fresco” nos supermercados já foi previamente congelado ou refrigerado durante o transporte, sem que isso seja mencionado explicitamente.
Na prática clínica e na educação alimentar, quando o objetivo é aumentar o consumo de peixe, o congelado é frequentemente a opção mais realista, viável e sustentável para a maioria da população.
8. Conclusão: alimentar o corpo, a razão e o planeta
A escolha entre peixe de aquacultura e peixe selvagem não deve ser movida por ideologias, medos infundados ou discursos desatualizados. Deve ser feita com base em evidência, bom senso e responsabilidade.
Hoje, a aquacultura europeia representa uma resposta moderna e altamente controlada à procura crescente de proteína animal saudável. É uma forma de garantir acesso a peixe de qualidade, seguro, acessível e produzido de forma cada vez mais sustentável.
A alternativa, muitas vezes, é:
- Evitar o consumo de peixe por medo ou desinformação, comprometendo a ingestão de nutrientes essenciais;
- Ou apostar em peixe selvagem de origem incerta, muitas vezes com maiores riscos de contaminação, menor rastreabilidade e impacto ambiental agravado pela sobrepesca.
É tempo de atualizar o discurso. O que está em causa não é apenas a origem do peixe, mas a saúde de quem o consome e a saúde dos oceanos.
Mais do que comer “natural”, importa comer com conhecimento. Porque comer bem, hoje, é também comer de forma informada.
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Boa tarde, Miguel
A questão que as pessoas me referem relativamente a tentatem optar pouco por peixes de aquacultura é mais a alimentação dos mesmos e não tanto os antibióticos. As farinhas maioritariamente compostas por transgénicos dos quais recebem pouca informação sobre as consequências do seu consumo… Acho que tantos anos depois ainda têm presente o ‘fantasma’ das vacas loucas.
Excelente artigo com base em referências científicas e apoiado em boas razões com vista à desmistificação de ideias erradas. Cada vez mais precisamos de informação válida para combater todo um sistema que veicula, recorrentemente, notícias e falsas e distorcidas. Grata por artigos como este.